terça-feira, 15 de agosto de 2017

29/2 - 1/10


Estava à procura das chaves do carro na carteira quando o viu, um pedaço de papel amarelado. Pegou nele e leu o que tinha escrito: “Quando abrires os olhos verás”.
Devia ser da Ermesinda. Tinha-a visto na confeitaria de onde acabara de sair. Ultimamente cortava rente todas as conversas daquela intriguista e ela devia tê-lo escrito para a incomodar, como se algo na sua vida não fosse como devia ser.
Tudo certo como Deus manda. 
O seu marido, Raul, um santo, ficara em casa adoentado, mas insistira em que não faltasse ao clube de leitura: “vai filhinha, sei como gostas de ir, eu fico bem”.
Imaginou-o em casa sozinho e de imediato decidiu. Ia era levar-lhe os bolos que tinha comprado para o clube, fazia-lhe um chá, contava-lhe do bilhete, rir-se-iam, e não teria mais importância.
Dito e feito, já no carro, inverteu a direcção e foi para a casa.
Estacionou perto da entrada e não pôde deixar de reparar que mais à frente, estava o carro vermelho da Luísa da farmácia, um pouco escondido sob a sombra do velho cedro. Era uma mulher vistosa na qual os homens reparavam, sobretudo depois de se ter separado.
Saiu do carro e empurrou o portão. Seria capaz de jurar que o tinha deixado fechado no trinco, mas estava entreaberto.
Abriu a porta de casa, entrou no hall a meia-luz, e ouviu o som de uma respiração arfante.
Nessa altura, pareceu-lhe que o coração lhe parava no peito.
Ai se o papel era verdadeiro e tinha andado de olhos fechados!
O barulho parecia vir do quarto e foi para lá que se dirigiu.
Viu primeiro a Luísa, com uma bata curta e atrás dela, sentado na cama o marido, em inalações para a constipação.
Voltou a respirar. O seu Raul era um santo.


28/1 - 10/10 - Persuasão


Até queria tentar, mas não tinha tempo ou talvez lhe faltasse a coragem.
Resolveu escrever um texto, uma lista de Prós e Contra,
mas ignorar o Prós.

Começou logo por:
Não tens tempo (até poderia ter, deitava-se por exemplo um pouco mais tarde ou acordava mais cedo).
Não tens imaginação (será que não? Lembrou-se do lema ensinado pela mãe: “se os outros conseguem, tu também consegues”).
Não sabes construir frases como quem esculpe na pedra, vida,
ou escolher palavras que rolem sem tropeçar nas ideias,
 (será mesmo preciso escrever assim?)
Não serás original (talvez conseguisse sê-lo, sem grandes exigências; lembrou-se da anedota sobre a tese rejeitada porque o que tinha sido escrito pelo seu subscritor, não tinha qualidade, e o que tinha de qualidade não tinha sido escrito por quem a subscrevia)
Ficarás em último (que vergonha, mas poderia recorrer a um pseudónimo e ninguém saberia ou desculpar-se com a falta de tempo – “não tive tempo para me dedicar e ser melhor, escrever melhor” – voltava à falta de tempo).
Campeonatos de escrita criativa não são para ti, são para outros que têm tempo e sabem escrever (talvez pudesse só participar, sem aspirar a ser seleccionada e assim obter uma avaliação objectiva).

E no final da lista, não ficou convencida.

28/1 - 9/10 - Hora de ponta


Estou atrasado, tão atrasado, mais de meia hora.
Tive de largar o táxi porque os carros não andam. Que grande merda!
Ela não vai desculpar-me desta vez. Vai dizer que não a faço sentir importante.
Mas não havia maneira de interromper a reunião. O cliente estava lá, a equipa dependia dele e foi brilhante na apresentação. Viu-o nos olhares de todos e na mudança de atitude do primeiro que de crítico, passou a colocar-lhe questões e a ouvir com respeito as suas sugestões.
Quando se despediram e olhou para as horas é que se apercebeu que dificilmente chegaria a tempo. Nem pensou em levar o seu carro. Correu para a rua, apanhou um táxi e disse-lhe para onde seguir. Quando já estavam perto e só via o trânsito parado, pagou o serviço e saiu. O restaurante ficava ao virar da esquina. Passou a passadeira a correr e viu os carros parados. Mesmo quando o semáforo mudava, pouco conseguiam avançar.
Chegou à porta, ajeitou a roupa enquanto recuperava o fôlego e normalizava a respiração. Pena não ter passado por uma florista, mas também não teria tempo para comprar-lhes flores.
Entrou.
Olhou em direcção à mesa que sempre escolhiam. E toda a esperança que ainda trazia consigo se apagou. Ela não estava lá.
Ia cumprir a sua ameaça. Seria a última vez que a deixava à espera num aniversário. Teriam sido assim tantas vezes? Como podia ser determinante quando em tudo o resto se entendiam. Desde que se tinham conhecido que cada dia sentia que gostava mais dela. Sentia que tinha finalmente encontrado a pessoa certa, quando antes nem acreditava que existia. Deveria lutar por uma nova oportunidade quando se sentia tão derrotado?
Nesse momento, ouviu o seu nome. Virou-se. Era ela, estava a sorrir e disse-lhe: “desculpa, com este trânsito, atrasei-me”.


28/1 - 8/10 Texto - Hotel


O pai, inglês perfilhou-o, mas não chegou a conhecê-lo. A mãe abalou para Inglaterra arrás dele. Quem o criou foi a avó. Sem deixar faltar nada ao neto, orgulhava‑se de serem pobres mas honestos.
Quando tinha sete anos aconteceu algo que o marcou. Invejou o estojo novo de um colega e tentou roubá-lo. Fê-lo tão mal que o viram.
Chamaram a avó à escola. Só pensava que do seu orgulho passara à sua vergonha. Da janela da sala do director viu-a a chegar. Com os seus passos curtos, meio curvada, mas a tentar olhar todos de frente. Quando ela assomou à porta, desabou a chorar: “não torno mais, vó, não torno mais”.
E avó não gritou, nem se zangou. Chorou com ele.
Decidiu que seria honesto sempre.

Sempre? Talvez não completamente. Com dezoito anos, apenas o 9º ano e não querendo emigrar para não deixar a avó, quando abriu a vaga para recepcionista no Hotel, mentiu. Disse que falava inglês. Com pai inglês, acreditaram.

Na primeira semana chegou ao hotel o grupo de rock Steel-Stone e estariam a recuperar do voo e diferença horária.
Esperava uma noite tranquila, mas pelas três da manhã tocou o telefone e era o líder, Roger, a gritar algo que lhe soou como: ” I’ want a portuguese stripper singer”.
Apelou ao que aprendera de inglês, lembrando-se da prima Gracinha que cantava num rancho. Não se recordava era do queria dizer “stripper”.
Ligou-lhe e ela acedeu a vir com dois elementos do rancho.
Quando chegaram, a prima um pouco mais gorda, todos vestidos com trajes regionais, levou‑os à suíte principal.
Estava muito barulho e não o deixaram entrar.
Nem meia hora depois, passavam por ele a correr a prima e os elementos do grupo, afogueados e meios despidos.

Ainda hoje a prima não lhe fala.

28/1 - 7/10 - Diálogo - Estás há muito tempo à espera?

- Estás há muito tempo à espera?
Não estava. Gostava de esperar pela irmã mais velha. Subia a rua que a levava do ciclo até à escola preparatória para depois ter companhia no caminho até casa. Enquanto ali estava, mergulhava nos seus pensamentos e pelo canto do olho ia observando os alunos mais adultos daquela escola. Um deles era o Jonas, pouco mais velho que ela. Conheceram-se quando ela foi para o 1º ano do ciclo, estava ele no 2º ano, na aula conjunta de ginástica. Os rapazes andavam a correr em aquecimento, ela exagerara uma gripe para ficar a enregelar num canto. Já meio arrependida da sua mentira, tropeçara nos seus próprios pés e o Jonas que passava por ela, agarrou-a e não a deixou cair. Desde então, observava-o de longe, meio agradecida, meio envergonhada por não ter sabido na altura dizer-lhe obrigada. Ficou com pena quando passou o ano e ele mudou de escola.
 - Não.
Retorquiu-lhe, sem o olhar, deixando que o cabelo lhe caísse para a frente e meio lhe tapasse a cara.
- E agora, quem é te agarra quando finges cair? Brincou ele.
Lembrava-se dela. Que horror e ao mesmo tempo, que bom, porque afinal não era tão invisível como às vezes se sentia e sobretudo porque não o era para ele.
Afastou o cabelo da cara para o encarar:  “podias ser tu”.
Olharam-se os dois e ele reparou que ela tinha crescido, estava quase da sua altura, ainda magrinha e com uma floresta de cabelo. Naquele ano reconhecera-a e observara-a de longe, primeiro a interrogar-se sobre o que viria ali fazer, depois notara que vinha encontrar-se com a irmã e saíam as duas. Gostou que não viesse encontrar-se com um namorado.
- Podia ser eu. Respondeu-lhe.

E sorriram um para o outro.

28/1 - 6/10 - Letra a

Era uma vez uma princesa.
Loura, bonita, encantadora.
Um belo dia resolveu sair de casa.
E foi à procura da vida lá fora.
Encontrou um príncipe que era belo como uma estátua.
Imóvel, calado, não quis nada com ela.
Seguiu em frente a nossa heroína, um pouco desanimada.
De seguida encontrou um sapo de cor esverdeada.
Lembrou-se do conto de fadas que lhe tinham contado em criança.
E lançou-se em perseguição do sapo de cor esverdeada.
Não foi fácil, mas conseguiu agarrá-lo com a sua mão delicada.
Chegou o seu belo rosto ao sapo e deu-lhe um beijo na cara.
Convém esclarecer que os sapos, sobretudo quando são encantados, têm cara.
No entanto, não aconteceu nada.
O sapo continuou um simples sapo de cor esverdeada.
Triste a princesa voltou para casa
E apercebeu-se que talvez não fosse uma princesa.
Mas por outro lado, isso deixava-a livre para poder ser tudo que quisesse ou nada.


28/1 - 5/10 - Sabes que

Sabes que não quero e nunca irei esquecer-me de ti.
Quero guardar tudo, o bom e o mau, porque mesmo uma má memória, se é de algo que vivemos juntos, é importante e preciosa, e agora é só o que tenho de ti.
Estou a escrever-te porque não posso falar contigo e quero crer que de alguma forma poderias ler, como se estivesses atrás de mim a espreitar por cima do meu ombro.
Lembro-me do teu rosto, dos teus abraços, de algumas das palavras e expressões que usavas e eram só tuas. Quando penso nelas, quase consigo ouvir a tua voz.
Quando morreste, o mundo mudou de um momento para o outro. Pareceu-me que atravessava uma linha que me separava para sempre de todos aqueles que não sabem. 
Não sabem que há dores que não passam, nos envolvem e se tornam parte de nós.
Não sabem que apenas com o tempo as conseguimos fechar em alguma gaveta para que fiquem em segundo plano, e possamos continuar a agir como se estivéssemos vivos.
Mas a dor está lá, permanece, e a qualquer momento, pode-se abrir a gaveta.
Então também senti medo porque o meu mundo se desmoronava. Nada fazia sentido porque não devias nem podias ter morrido.
Depois senti raiva. Sabia o que tinha sucedido, mas não conseguia acreditar.
Aceitar foi apenas o acreditar.
Pouco a pouco, quando fui forçada a trocar os nossos antigos hábitos por outros em que tu não estás, deixei de estranhar não te ver, não poder telefonar-te, não estar contigo.
Mas sabes, enquanto eu for eu, não me esquecerei de ti.



28/1 - 4/10 Email

Caro Director de Recrutamento do Inferno Luci Fer,

O nosso Director do Centro de Atendimento ao Cliente (o São Pedro, caso não te recordes) de há uns meses para cá, tem vindo a reportar um aumento exponencial de queixas dos nossos clientes, mais de 90% dizem que mereciam o Céu e foram enganados.
Até aqui tudo bem, C’est la vie. Mas, este aumento significativo de queixas já levou o São Pedro a pedir mais dois arcanjos. Por outro lado, o orçamento para manter o Inferno bem quentinho está-me a estoirar o equilíbrio orçamental. Estamos com um défice de 3%. INSUPORTÁVEL!!!
Vamos lá trabalhar em equipa, e pára JÁ de martirizar os terráqueos. Caso não sigas as indicações do Board, terás no próximo ano um corte orçamental proporcional ao défice, e em igual proporção nos teus prémios de desempenho.
Melhores Cumprimentos
Pelo Presidente do Conselho de Administração

D.




Caro Luci Fer

Como deverás saber, uma vez que nos conhecemos há tantos anos que pesam como dezenas de séculos, não gosto de rodear os problemas e sim ir directo ao que me preocupa.
Ora, os meus assessores chamaram-me a atenção, e pude também confirmá-lo pela consulta dos últimos gráficos, que a crescente actividade dos teus funcionários conduziu a um crescimento desmesurado dos teus domínios e diminuição exponencial dos meus.
Contudo, sabemos os dois que no passo seguinte, lutas contra o superpovoamento.
Venho assim solicitar que martirizes menos a população destinatária das nossas campanhas, advertindo-te que não o fazendo, irei elevar ainda mais os meus critérios de admissão. Desta forma poderás ter de enfrentar, juntamente com a falta de espaço, o problema do surgimento de falsos profetas que aparecem sempre nestas alturas de crise – sem que nada faça para os denunciar.
Proponho assim para a manutenção da sã convivência habitual, a construção de uma ponte de entendimento, em que aligeires a tua actividade e mantenhamos os níveis nas futuras admissões.
Cumprimentos
D.

28/1 - 3/10 - Discurso


Caros colegas, alunos, pais, família e amigos.
Obrigada por terem vindo hoje, mesmo que seja para confirmarem que é desta que não regresso mais à escola.
Olhando para trás, custa-me a crer que já passaram cinquenta anos desde que leccionei a minha primeira aula.
Desde então, pude acompanhar a formação de várias gerações e crer que apesar dos tempos serem difíceis, poderemos esperar tudo dos nossos filhos ou netos, no meu caso.
E por tudo, claro que me refiro a realizações positivas, mesmo entre aqueles que podem ter passado por reprovações e faltas disciplinares, mas que souberam aproveitar as oportunidades na escola.
Durante estes anos tive sempre a grata surpresa e felicidade de reencontrar os meus antigos alunos a exercerem as mais variadas profissões.
Lembro-me por exemplo do dia, em que encontrei o João A como carteirista, que me levou a carteira sem eu reparar, e o João B como policia que o apanhou.
Não pude deixar de reparar com o maior orgulho como os soube ensinar a correr.
Como sabem, apesar de leccionar educação física fui sempre adiando a reforma
Tal só sucede agora, não por não ter há muito o vigor da juventude e os meus olhos me pregarem partidas levando-me a trocar algumas caras e notas,
Ou ter tido também a má-sorte de passar por diversas fracturas em consequências de estranhas quedas – sei que as brincadeiras com as cascas de banana não me eram dirigidas,
Ou pelos constantes adiamentos legais da idade da reforma e redução do valor da pensão
Mas porque eu e a minha Maria ganhámos o euromilhões.
Vamos viajar pelo mundo e no regresso contribuir, sem dúvida, para o desenvolvimento do país, com a criação de novos empregos e investimento na carreira dos colegas e antigos alunos, aqui presentes.
Bem hajam por terem vindo.


28/1 - 2/10 Canção



O sonho comanda a vida
No sonho há a magia
Que nos faz crescer

Estrada fora, cabelos ao vento
Olhando para trás ela pode dizer
Que soube viver, soube viver

Pais ocupados, não a entendiam
Estava sozinha, não a queriam
Foi para a cidade para poder ser

Cantou à noite em bares vazios
Paixões fugazes, raros amigos,
Fama não chegou nunca a ter

Fez o que queria, viveu o sonho,
Olhando para trás ela pode dizer

Que soube viver, soube viver

Experiência

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